A língua inarticulada, isto é, língua de palavras-sons que não pertencem ao repertório do português, e, por isso, não reenvia a significados conhecidos, mas a outro tipo de experiência da linguagem, percorre quase toda a obra de Guimarães Rosa. De fato, como já foi observado pela pesquisadora Ana Luiza Martins Costa, grande parte da invenção linguística de Rosa se dá no registro acústico. Neste artigo, analiso a novela ¨Buriti¨, onde a inarticulação da língua atinge picos particularmente vigorosos. Inicio o meu texto com uma apresentação geral da novela, que concluo com a sugestão de uma cumplicidade interna conectando, de um lado, o traçado das forças e formas que se delineiam em ¨Buriti¨, e, de outro, a presença exacerbada da inarticulação nesta novela. Num segundo momento, passo à caracterização do que chamo de língua inarticulada como o fenômeno supostamente periférico,
segundo certas vertentes da linguística guiada pelos ideais da representação ou da comunicação. Por fim, retomo o fio da análise da novela, seguindo de perto a experiência a que submete a língua, ressaltando seus efeitos mais perturbadores e instigantes, a partir de certas afinidades traçadas com o pensamento de Deleuze.
A tese se dedica à escrita de Guimarães Rosa sob a perspectiva da inarticulação: atenta às ocasiões em que a língua é levada a seu limite intensivo, ao se deixar atravessar sobretudo por vozes animais (grunhir, uivar, grasnar, piar, balir, sibilar, chiar, etc.), ruídos naturais (vento, água, fogo, etc.) e pelo registro musical. Explorando os modos singulares com que Rosa trabalha sonoridades investidas de forças anárquicas e criadoras, o estudo mostra que um dos traços mais relevantes em sua obra é trazer à tona a experiência de inarticulação da linguagem. Tal experiência manifesta-se como lugar privilegiado de desestabilização das fronteiras habitualmente pressupostas entre o que se convencionou chamar, de um lado e de outro, língua e vida - revelando o corpo material da língua como condição irredutível para que se descortinem vínculos intensivos com as coisas através da literatura. O pensamento contido na própria forma como Rosa trabalha a sua língua é posto em diálogo com as reflexões de Gilles Deleuze/Felix Guattari sobre a língua intensiva, e com as considerações de Friedrich Nietzsche acerca da experiência dionisíaca da música. Assim orientada, a tese se compõe de três ensaios. O primeiro aborda a inarticulação da língua na novela Buriti, de Corpo de Baile, em leitura centrada na personagem Chefe Zequiel e nos modos pelos quais sua sensibilidade auditiva prodigiosa capta micro-percepções sonoras da noite e as transfere para uma língua à beira de se tornar guincho, uivo, assovio do vento. O ensaio seguinte mostra o paralelo existente entre o retorno do ruído na música contemporânea, capitaneado pelo músico John Cage, e a invasão da escrita pela infinita gama de sonoridades não dicionarizadas de que se compõe a obra de Guimarães Rosa. Elabora-se ainda, em correlação com a analogia musical aí desenvolvida, uma interpretação da pouco comentada novela A estória do homem do Pinguelo, de Estas Estórias. Por fim, o terceiro ensaio apresenta a aliança entre poesia, música e inarticulação da língua no cerne do projeto literário do escritor mineiro. Oferece-se aí uma visão do processo criativo de Guimarães Rosa como transmutação de forças e afectos presentes nos sons antes da articulação, em uma língua poética em íntimo enlace com a musicalidade. Também se propõem, nessa ocasião, leituras de Cara-de- Bronze, de Corpo de Baile, e de Duelo, de Sagarana.