Guimarães Rosa costumava dizer que só se pode falar do sertão por meio do conto ou da lenda. Considerando Grande Sertão: Veredas um grande conto, defendo a importância dessa forma como um ensaio que busca a redescoberta da Terra Nova mediante a fala de um ex-jagunço semiletrado. Se nossa História não foi forte no sentido de uma contribuição filosófica, a geografia, terra dos contos, anuncia o pensar enquanto força cujo gesto fundador se baseia no poder de pactuar com o cotidiano o nascimento da Literatura.
Este trabalho analisa perspectivas de linguagem e sentido que se esboçam em 59 cartas trocadas entre Guimarães Rosa e sua tradutora norte-americana, Harriet de Onís. Partindo de um ponto de vista pós-estruturalista, segundo o qual a linguagem é não instrumento de representação, mas antes uma multiplicidade de práticas históricas, voláteis, descontínuas e, portanto, refratárias a teorias gerais de ambição essencializante, busca-se reconhecer no espaço extra-teórico das cartas a fecundidade dos diferentes estilos de ver a linguagem que se oferecem nesse ponto particular do corpus roseano. Mostra-se a irreducibilidade dessas visões a qualquer filosofia geral, as marcadas diferenças de atitude perceptíveis entre Guimarães Rosa e Harriet de Onís no que se refere à linguagem (diferenças que enfatizam por contraste as posições roseanas), e, sobretudo, a forma particular como o Rosa das cartas promove performativamente o abalo de expectativas reducionistas e culturalmente arraigadas sobre a linguagem. Especial atenção é dada ao modo como em Rosa o paradoxo emerge como força criadora e não como embaraço, aporia: pela produtividade do paradoxo, abrem-se ângulos fecundos pelos quais se logra reconhecer, ou, nos termos de Rosa, pensar-sentir, diferentes aspectos da linguagem, notadamente a língua comum; a dinâmica vital que enlaça texto, autor, tradutor e leitor; a racionalidade e o mistério irredutível da língua; e o estatuto do poético no idioma.
Esta dissertação propõe uma leitura de Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, através das lentes de Walter Benjamin, usando como intercessores os ensaios "A imagem de Proust" e "Sobre alguns temas em Baudelaire". Nesses ensaios Benjamin levanta questões fundamentais a respeito da memória, do esquecimento, da experiência (Erfahrung) e da vivência (Erlebnis) entrelaçando-as com narrativa, temporalidade e modernidade. A intenção será investigar como estas questões permeiam Grande sertão: veredas e pensar se, a exemplo de Proust e Baudelaire, Rosa conseguiu se aproximar da possibilidade de construir a experiência (Erfahrung) através de sua prosa poética, de acordo com os conceitos benjaminianos contidos nos ensaios em questão. A partir das diversas afinidades eletivas identificadas entre Rosa e Benjamin, também se pretende imaginar se Rosa poderia ser mais uma estrela na constelação de escritores sobre os quais Walter Benjamin escreveu. Afinal, como se verá, Rosa e Benjamin são dois místicos e míticos escritores que colocam a linguagem acima de tudo e a literatura como meio para explorar questões filosóficas e metafísicas.
O objetivo desta tese é pensar o fazer literário de João Guimarães Rosa e a constituição de sua imagem enquanto autor, a partir de seus arquivos e estabelecer um diálogo com a sua biografia. A proposta é explorar como o escritor passava do ?desejo de escrever? à ?escritura?; o trânsito entre a forma breve e a forma longa e vice-versa; a sua relação com a imprensa. Por fim, analisaremos o seu romance inacabado A fazedora de velas, articulando-o com os últimos livros que publicou em vida e com obras de outros autores, tais como Marcel Proust e Gilberto Freyre. Roland Barthes será o principal intercessor por essas veredas literárias, em especial, os últimos cursos que ministrou no Collège de France, publicados no Brasil sob o título A preparação do romance (volumes I e II).
Sob o Tapatrava de Guimarães Rosa: o misticismo na vida e na literatura de Joãozito, é a tentativa de, a partir dos cadernos de anotações pessoais, correspondências, entrevistas e relatos de parentes e amigos, mostrar o grau de importância do misticismo na vida de Guimarães Rosa e como isto teria influenciado a sua forma de ver e fazer literatura. Baseando-se em fontes biográficas, indicações de leituras encontradas em sua biblioteca particular e revelações feitas pelo próprio escritor, procurou-se desfazer a idéia de que o misticismo era apenas usado como um recurso intertextual e sim, que este é uma crença pessoal que é transposta para sua literatura. Inclusive a feitura dessa literatura rosiana é discutida nesta dissertação, a partir da sua relação com a intuição mística e com a visão de uma linguagem alquímica pré-babélica que muito se assemelha à linguagem adamítica de Walter Benjamin.
Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade
Em Solve et Coagula - dissolvendo Guimarães Rosa e recompondo-o pela ciência e espiritualidade é investigada a importância da espiritualidade na formação do escritor Guimarães Rosa e na confecção de suas obras, rincipalmente Primeiras Estórias e Ave, Palavra. A partir de relatos de amigos e parentes, entrevistas, cartas e anotações pessoais, analisa-se como esse interesse pela espiritualidade - principalmente pela Cabala, Tarô e Astrologia - aparece nos seus textos, tanto na construção quanto em personagens, linguagem e estórias, em equilíbrio com um pensamento cientificista. Para melhor compreender a questão espiritual do escritor mineiro e o seu desenvolvimento na ficção, também é estudada a visão de "religiosidade" rosiana analisada por Vilém Flusser e como ela se relacionaria diretamente com a linguagem poética do escritor mineiro.
A tese analisa a relação entre arte e pensamento, atuante nas culturas arcaicas, e problematizada pela ruptura da filosofia com o legado mítico-literário, desde o momento grego que instaurou a epistemologia ocidental. Essa relação insere os dois autores destacados — Friedrich Nietzsche e João Guimarães Rosa — no contexto dialógico entre esses dois saberes que os ultrapassa e os transforma enquanto movimento repetitivo e insistente na trajetória do pensamento. A leitura de Nietzsche segue os tópicos apropriados por Gilles Deleuze para considerá-los em contraponto às proposições de Guimarães Rosa, correspondentes às perguntas que resultaram nos conceitos nietzschiano-deleuzianos. A tese observa o interesse desses autores em explorar a linguagem como ambiente de experimentação de seus processos escriturais inovadores. Lança-se o foco crítico sobre o ponto de contato da obra de Nietzsche com a chamada Filosofia do Trágico, momento em que os filósofos alemães modernos debruçaram-se sobre a tragédia, por haverem reconhecido nela uma visão de mundo, um documento de filosofia primeira, na qual estão reveladas questões relevantes sobre a existência, o ser. É nesse ambiente que o pensador se forma filólogo e se torna filósofo, construindo, pelo viés do estilo de escrita, a peculiaridade de seu sistema de pensamento. A potência desse pensamento trágico vem da valorização radical da literatura, o lugar e a verdade do poeta, a arte como máxima afirmação. De outro lado, definindo-se como amante da linguagem, do literário, João Guimarães Rosa passa também a integrar a antiga relação pensamento e arte. Sua escrita articula modos de pensar arcaicos e modernos, resíduos de diferentes tradições orais e experimentos de vanguarda. São observados pontos em que essa escrita constrói novas formulações para os problemas de que os filósofos sempre se ocuparam. A estratégia adotada se dedica a captar momentos nos quais o autor enfrenta, através dos instrumentos especulativos da arte e das práticas rurais cotidianas, questões caras ao que ficou conhecido como filosofia.
"Tudo significa, as coisas" é um estudo em texto e imagem a partir do conto O recado do morro, uma das narrativas que compõem a obra Corpo de Baile, de Guimarães Rosa, 1956. O trabalho visa criar um campo de investigação a partir de um conjunto de objetos produzidos no âmbito da própria pesquisa ou preexistentes a ela. Além do próprio conto, esses objetos são: o documentário de média metragem seres, coisas, lugares, inspirado em O recado do morro e filmado em Morro da Garça, Minas Gerais, lugar que serve de cenário à estória de Rosa; o experimento de escrita Tudo significa, as coisas, construído, predominantemente, com as falas extraídas do material bruto do filme; e as cadernetas de viagem de Guimarães Rosa, publicadas com o título A Boiada. Integram ainda o presente estudo, um "caderno de reflexões críticas", um "caderno de notas relacionais" e um "caderno de trabalho". O objetivo da pesquisa é, através desses objetos, identificar, produzir e refletir sobre as relações - trânsitos, ressonâncias, articulações, dobras - entre: fala e escrita; literário e não-literário; documental e ficcional; cinema e literatura, Eu e Outro.
O trabalho A noção de erro em Corpo de Baile, de Guimarães Rosa: uma estratégia poética visa destacar as passagens nas quais o léxico erro aparece em Corpo de Baile, de Guimarães Rosa, compreendendo o vocábulo enquanto escolha intuitiva do autor para construção e tratamento epistemológico dado às trajetórias de seus herois. Baseado na teoria de juízo de eliminação da dúvida, o trabalho tenta compreender de que forma o flagrante do erro imputa aos herois do ciclo a responsabilidade sob seus atos. A dissertação faz uma leitura a contrapelo do erro trágico, defendendo que a percepção de um engano e as questões éticas que dele decorrem constituem o argumento rosiano de Corpo de Baile. A pesquisa procurou compreender de que forma a escolha pelo léxico erro responde à necessidade dos herois rosianos refutarem a si próprios, amparados pela emoção, e não exclusivamente pela razão. A pesquisa detectou que, para traçar esse movimento rotação, os herois de Corpo de Baile operam transposições: da dúvida à decisão; da decisão à esperança. Do flagrante do próprio erro, cada protagonista, primeiramente, se mantém no melindre da decisão; suficientemente munido de confiança, opta por um ou outro caminho. Circunscrevendo nas sete narrativas o princípio de autorreparação, a pesquisa ata a trama do erro num movimento de translação em torno do tema. O trabalho conclui que os protagonistas, submetidos à eliminação de uma dúvida interna, conseguem rever a si próprios e despertar no leitor uma motivação.
O trabalho toma a série de setenta e um desenhos, colagens, aquarelas e xilogravuras G.S.:V. – uma tradução em imagens do romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, feita pelo artista plástico mineiro Arlindo Daibert – como recriação de processos descritivos e descrição de processos criativos do romance. Parte-se do pressuposto de que, ao se esquivar do compromisso tradicional da ilustração com o encadeamento e o conteúdo narrativos, de modo coerente com sua concepção de desenho como forma de raciocínio e com seu próprio projeto artístico, Daibert consegue retomar e desdobrar algumas das questões estéticas, culturais e históricas mais importantes do romance, através do estabelecimento de uma cartografia que se caracteriza antes pela mescla de referências que pela fixação de limites entre elas. Buscou-se abordar essas questões de forma a estabelecer, adicionalmente, um estreito diálogo com a crítica especializada da obra de Guimarães Rosa, não a fim de legitimar as reflexões visuais através da crítica literária, mas ao contrário, a fim de mostrar o quanto ambas podem ganhar em mútua colaboração.
A dissertação investiga os contos de Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa, em termos da subversão de algumas metáforas conceituais convencionalizadas - conhecimento como visão, estados como lugares, propósitos como destinos, mudanças como movimentos, e algumas outras, tais como descritas pelos cognitivistas George Lakoff, Mark Johnson e Mark Turner - e em termos do vínculo entre esta subversão e o conflito instaurado entre os modos de vida dos personagens.
Este trabalho examina a correspondência entre Guimarães Rosa e seus tradutores alemão, italiano e norte-americana, com vistas à depreensão e análise de perspectivas rosianas sobre o simbolismo sonoro. Examinam-se as reflexões sobre o tema que se podem depreender (a) das considerações gerais que Rosa faz no corpo das cartas enviadas a seus tradutores; e (b) das detalhadas instruções que ele acrescenta em anexos, para dirimir dúvidas específicas colocadas pelos tradutores. Mostra-se, pela análise das epístolas, que a criação linguística rosiana tende a abarcar de forma deliberada e até certo ponto calculada a sonoridade sugestiva, por meio de singulares onomatopeias, aliterações, assonâncias e padrões rítmicos, resultando em um simbolismo sonoro. Conferindo carga expressiva, força e plasticidade ao texto, o simbolismo sonoro é um importante aliado nas estratégias rosianas de privar o leitor da ?bengala dos lugares comuns? (carta a Harriet de Onis) e de convidá-lo a ter com a língua uma relação que não seja unicamente ?lógico-reflexiva? (Carta a Edoardo Bizzarri). Mostra-se ainda que, no que tange às formas como dialogam com as teorias linguísticas, as reflexões e atitudes tradutórias de Rosa, tendendo à recusa do princípio da arbitrariedade do signo, apresentam convergências parciais com discursos teóricos que sustentam o simbolismo sonoro, em especial os de Jespersen e Jakobson.
Resumo analítico : Na discussão de gêneros na obra de João Guimarães Rosa, onde entra o épico? O objetivo do trabalho é desvendar o que pode ser chamado de épico, já que é comum a crítica assim se referir à obra, neste romance de Rosa, e também analisar a presença, ou não, de outros gêneros literários consagrados. Diferenças básicas e semelhanças entre este romance e a Ilíada e a Odisséia. Que tipo de herói é Riobaldo? O trabalho procura cercar este herói tão complexo, capaz até de atos bastante questionáveis, no cenário das tipificações tradicionais dos tipos de heróis, como elevado, baixo, burguês, anti-herói e etc.
A tese se dedica à escrita de Guimarães Rosa sob a perspectiva da inarticulação: atenta às ocasiões em que a língua é levada a seu limite intensivo, ao se deixar atravessar sobretudo por vozes animais (grunhir, uivar, grasnar, piar, balir, sibilar, chiar, etc.), ruídos naturais (vento, água, fogo, etc.) e pelo registro musical. Explorando os modos singulares com que Rosa trabalha sonoridades investidas de forças anárquicas e criadoras, o estudo mostra que um dos traços mais relevantes em sua obra é trazer à tona a experiência de inarticulação da linguagem. Tal experiência manifesta-se como lugar privilegiado de desestabilização das fronteiras habitualmente pressupostas entre o que se convencionou chamar, de um lado e de outro, língua e vida - revelando o corpo material da língua como condição irredutível para que se descortinem vínculos intensivos com as coisas através da literatura. O pensamento contido na própria forma como Rosa trabalha a sua língua é posto em diálogo com as reflexões de Gilles Deleuze/Felix Guattari sobre a língua intensiva, e com as considerações de Friedrich Nietzsche acerca da experiência dionisíaca da música. Assim orientada, a tese se compõe de três ensaios. O primeiro aborda a inarticulação da língua na novela Buriti, de Corpo de Baile, em leitura centrada na personagem Chefe Zequiel e nos modos pelos quais sua sensibilidade auditiva prodigiosa capta micro-percepções sonoras da noite e as transfere para uma língua à beira de se tornar guincho, uivo, assovio do vento. O ensaio seguinte mostra o paralelo existente entre o retorno do ruído na música contemporânea, capitaneado pelo músico John Cage, e a invasão da escrita pela infinita gama de sonoridades não dicionarizadas de que se compõe a obra de Guimarães Rosa. Elabora-se ainda, em correlação com a analogia musical aí desenvolvida, uma interpretação da pouco comentada novela A estória do homem do Pinguelo, de Estas Estórias. Por fim, o terceiro ensaio apresenta a aliança entre poesia, música e inarticulação da língua no cerne do projeto literário do escritor mineiro. Oferece-se aí uma visão do processo criativo de Guimarães Rosa como transmutação de forças e afectos presentes nos sons antes da articulação, em uma língua poética em íntimo enlace com a musicalidade. Também se propõem, nessa ocasião, leituras de Cara-de- Bronze, de Corpo de Baile, e de Duelo, de Sagarana.