Ao autor João Guimarães Rosa (1908-1967) atribui-se qualificativo de “pensador do Brasil”, assim como outras fórmulas correlatas: por exemplo, “retratista”, “intérprete” do país. A referência o ajusta ao lado dos clássicos ensaístas nacionais da primeira metade do século XX. Esta abordagem de “Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo”, da obra Sagarana (1946), acompanha tal perspectiva. A narrativa dramatiza um dilema brasileiro, representando, de forma cômico-satírica, certas condições e aspectos da organização, formação de nossa sociedade, no âmbito sociopolítico. Na urdidura literária articulam-se imbricadas temática e forma estrutural do enredo na produção de sentidos. O recorte deste estudo centra seu argumento na elaboração literária da narrativa e no conceito de “cordialidade”, de Sérgio Buarque de Holanda. A propósito da atualidade e força do debate acerca do tema, ainda na ordem do dia, o sociólogo Francisco de Oliveira publicou artigo intitulado “Jeitinho e jeitão – uma tentativa de interpretação do caráter brasileiro” (2012), tendo como tese a defesa de que atributos das classes dominantes brasileiras são transmitidos às classes dominadas, o que constitui o caráter nacional. Circunscritos ao âmbito dessas questões convergem os apontamentos propostos sobre o texto rosiano.
Neste artigo, intentou-se evidenciar nas narrativas Grande Sertão: veredas e “Famigerado”, escritas por João Guimarães Rosa, elementos da discussão sociológica realizada em Raízes do Brasil de forma a contribuir para ilustração do conceito de cordialidade conforme desenvolvido por SBH. Argumenta-se que, ao representar o encontro entre os personagens principais com o “doutor” ilustrado, Rosa ilumina os conceitos de cordialidade e civilidade, compreendidos em Raízes do Brasil.
Neste artigo examina-se a narrativa “A Benfazeja”, do livro Primeiras estórias, de João Guimarães Rosa investigando a sua contribuição para ilustrar aspectos pouco investigados acerca do conceito de cordialidade presente em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Soma-se a essa análise uma leitura acerca das relações de poder elaboradas na narrativa que permitem verificar uma ruptura com a representação dos ideais da família patriarcal engendrada pelo soterramento do modelo ideal, banimento do poder masculino e descaracterização do papel idealizado da mulher. Nota-se, por fim, como a negação da subjetividade feminina, por parte do patriarcado, está ainda presente na estrutura social brasileira e tem alimentado comportamentos misóginos. Por tais razões considera-se que a narrativa consiste em metáfora das relações de poder entre democracia e patriarcado estabelecidas ainda hoje na sociedade e na democracia brasileira.
O objeto de estudo desta tese são algumas das narrativas elaboradas por João Guimarães Rosa e compiladas nos livros: Sagarana, Primeiras Estórias, Estas estórias, Ave, palavra, Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas. A análise deste corpus tem a finalidade de verificar até que ponto essas narrativas ajudam a repensar o conceito de homem cordial presente no pensamento sociológico brasileiro, tendo em vista, sobretudo o desenvolvimento deste conceito no ensaio Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (doravante SBH). Dada a inscrição dessas narrativas entre o sertão arcaico e a fundação do ambiente urbano brasileiro, mesmo panorama discutido por SBH, a partir da argumentação desenvolvida, concluiu-se que há um reaproveitamento estético de algumas das principais discussões desenvolvidas por SBH, sobre as raízes da sociedade brasileira. Acredita-se que tal reaproveitamento estético permite que a cordialidade ressoe no corpus analisado, o que nos leva a forjar aqui o qualificativo de poética da cordialidade para as narrativas produzidas por JGR e a enxergar no perfil biográfico desse autor um intérprete do Brasil.