"O
jogo começou a me dominar, mas eu não percebia,
cheguei até a deixar minha neta sozinha em casa para
jogar. Agora virou um mar de lama. Não tenho dinheiro,
mas roubo cheque do meu marido, que está com câncer
ósseo e me culpa pela doença. Tentei suicídio,
minha amiga me salvou. Não sei como pude chegar nesse
ponto. Ganhei 29 mil reais em outubro e na metade de novembro
já tinha gastado tudo, foi tudo. Estou com problema
de pressão alta, minha família não quer
mais saber de mim. Já cheguei a gastar de 700 a 2.000
reais num só dia. Eu odeio o jogo, mas sou impotente
a ele". Esse é o depoimento de Roberta (nome fictício),
65, que demorou quase dez anos para descobrir que era uma
doente compulsiva pelo jogo e freqüenta há três
meses os Jogadores Anônimos.
Carolina
tem todos os sintomas da doença do Jogo Compulsivo
ou Patológico, problema que está sendo negligenciado
pela mídia e pelo governo em meio à polêmica
causada pelo caso Waldomiro Diniz e a medida provisória
que proibiu o funcionamento das casas de jogo no País.
Enquanto
a Abrain (Associação Brasileira dos Bingos)
alega que o fechamento dos bingos ameaça 320 mil empregos
diretos e indiretos, pouco se divulga a respeito da massa
de freqüentadores de bingo que joga compulsivamente.
"Não se fala em nenhum mecanismo de proteção,
prevenção ou de campanha para esclarecimento
da população quanto aos problemas causados pelo
jogo", diz Hermano Tavares, psiquiatra especializado
no Jogo Compulsivo, que alerta para o lado não glamoroso
dessa atividade. "O jogo é um mecanismo de concentração
de renda que causa dependência nas pessoas vulneráveis,
que sofrem, contraem dívidas, perdem empregos, desamparam
famílias. Ou seja, também fazem sofrer as pessoas
à sua volta." Ele calcula que, numa cidade do
porte de São Paulo, 2,5% da população
seja afetada pela doença, mas considerando ao menos
quatro membros da família envolvidos, a taxa sobe para
10%.
O
psiquiatra afirma que o aumento do número de viciados
em jogos de azar é recente. "O jogo existe desde
a Antiguidade, mas seu casamento com tecnologia e turismo
é um fenômeno do capitalismo do último
século", afirma. Segundo Tavares, que é
também coordenador do Ambulatório do Jogo Compulsivo
no Hospital das Clínicas de São Paulo (Amjo),
os estudos sobre a doença são recentes. "A
primeira abordagem não moralista ocorreu com a fundação
dos Jogadores Anônimos (J.A), entidade de auxílio
aos que pretendem se curar, em 1957, nos EUA. Mas a abordagem
médica só ocorreu em 1971, seguida do reconhecimento
oficial pela Associação Internacional de Psiquiatria,
em 1980, e finalmente do reconhecimento internacional pela
Organização Mundial da Saúde em 1992",
revela.
Para
Tavares, que está desde 1997 envolvido com o estudo
e tratamento da doença, a evolução do
jogador social para o compulsivo pode variar de seis meses
a 20 anos. "A forma habitual é a familiaridade
com o jogo, quando há prática no contexto familiar.
Depois ele chega nos jogos mais estruturados e de exploração
comercial, como o jogo do bicho, bingo, loteria", diz.
Assim como todos os jogadores, eles perdem e ganham de vez
em quando, mas a conjunção de problemas pessoais
pelos quais a pessoa esteja passando naquele momento faz com
que sua memória apenas registre os altos valores ganhos.
"O contraste de um momento delicado com a alegria da
vitória é mais estimulante. Aquilo encoraja.
Ele acredita ter a capacidade extraordinária de controlar
o incontrolável e começa a jogar mais",
diz o psiquiatra, que classifica esta primeira etapa como
a fase do vencedor.
Ela
termina quando o jogador percebe o rombo na conta bancária
e começa a jogar mais para tentar recuperar os prejuízos,
aposta mais e aprofunda as dívidas, entrando na fase
de perdedor. "Nessa fase ele quebra financeiramente,
e é obrigado a procurar auxílio. Os parentes
e amigos não entendem, mas acabam emprestando dinheiro
e os viciados prometem parar", diz Tavares, que considera
essa a pior atitude que a família pode tomar, já
que o jogador quita as dívidas e continua com o vício.
Assim
mergulha na terceira fase, que "é quando ele volta
a jogar um pouco ou muito para tentar pagar a dívida,
quebra seu voto de moderação/abstinência
e entra em desespero", continua o especialista. "O
jogador contrai uma dívida dupla, financeira e moral:
joga de maneira mais desesperada e alcança a exaustão
física e moral." Chegado o fundo do poço,
as possibilidades são o tratamento, ou suicídio.
Segundo Tavares, não existe uma taxa nacional oficial
de suicídio entre os jogadores, mas ela é de
15% entre os pacientes que procuram tratamento no Amjo.
O
tratamento varia de acordo com o estágio da doença.
"O vencedor precisa de informações básicas
para entender o funcionamento do jogo e acreditar que no longo
prazo sempre vai perder dinheiro. Os envolvidos em estágios
mais graves precisam do acompanhamento de um profissional
de saúde mental", alerta o médico, que
recomenda, em todas as fases, os Jogadores Anônimos.
A
entidade, que tem como princípio o anonimato e funciona
sem fins lucrativos, ganhou estabilidade no Brasil somente
em 1995, no Rio de Janeiro, de onde se difundiu para o resto
do País. O tratamento segue o mesmo modelo dos 12 passos
e tradições dos Alcoólicos e Narcóticos
Anônimos. "É um programa espiritual, onde
nos rendemos a nossa impotência perante o jogo e nos
entregamos a uma força superior", afirma Carlos
(nome fictício), 47 anos, que parou de jogar dez dias
depois de começar a freqüentar o J.A, em outubro
do ano passado. "A segunda etapa é um processo
de auto-ajuda, em que revemos nosso caráter e tentamos
trabalhar nossa auto-estima", diz. Carlos já vivenciou
situações complicadas, quando precisou explicar
sua história para amigos numa viagem ao surgir a chance
de jogarem pôquer, em casa. "O mais importante
é se manter abstinente. Não posso voltar a fazer
uma aposta, porque vou fazer a segunda, a terceira, e deixar
que a doença tome conta de mim", desabafa.
O
envolvimento de Carlos com o jogo começou há
18 anos, por brincadeira, com as máquinas de videopôquer
que chegavam no Brasil. "Desenvolvi a compulsão
muito rápida, em cerca de três meses. No princípio
estava bem empregado, ganhava bem e tinha credito, até
que o dinheiro acabou e eu precisava de alguma maneira arrumar
mais para sustentar meu vício. Comecei
a furtar dinheiro da carteira da minha mulher, dos meus irmãos,
e do próprio banco onde eu trabalhava", depõe.
Ele teve uma série de recaídas, perdeu bons
empregos, e quando se restabeleceu, com a ajuda de um amigo,
voltou a jogar. "O único objetivo da minha vida
era jogar, não tinha mais prazer em sair, me divertir,
ou crescer profissionalmente. Abandonei minha vida sexual
e familiar", diz Carlos, que decidiu procurar a ajuda
do J.A. quando chegou "ao fundo do poço".
Carlos
jogava nas maquinetas que, segundo o psiquiatra Hermano Tavares,
podem ser comparadas à "droga pesada" dos
jogadores. "Cerca de 60% dos viciados prefere jogar nas
maquinetas." A "droga leve", para Tavares,
são as loterias e jogo do bicho. "O principal
fator viciante é o encurtamento entre a aposta e o
resultado", explica.
A
aposentada Francisca Teotônio, 53 anos, ex-funcionária
do Cepeusp, joga há mais de 15 anos no bicho, na MegaSena,
na TeleSena e ainda paga o carnê do Baú. Mas
acredita não ter problemas com o jogo. "É
só um pouquinho. Fico entusiasmada vendo os outros
ganharem na TV e decido fazer uma fezinha", diz.
O
Ambulatório do Jogo Compulsivo no Hospital das Clínicas
funciona há sete anos com o trabalho voluntário
de psicólogos e psiquiatras, que estudam a aplicação
de um tratamento eficaz, que equilibre complexidade e custo.
Eles já desenvolveram dois manuais de esclarecimento
da doença, para jogadores e terapeutas, mas não
possuem recursos para acelerar o projeto. Caso o governo decida
pela legalização dos bingos, o coordenador do
Ambulatório, apesar de contrário a esta medida,
tem uma proposta: "Para cada percentil de taxação
que se faça no bingo para aumentar a arrecadação
de imposto, o mesmo deveria ser direcionado para a saúde
pública", diz Tavares. Pela primeira vez em sete
anos, o Amjo está abrindo vagas para novos interessados
no tratamento da doença do Jogo Compulsivo.
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serviço |
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Ambulatório
do Jogo Compulsivo (Amjo)
t. 3083-7816
Deixar nome completo e telefone
com horários para contato na secretária
eletrônica.
A equipe promete retornar em 48h
Jogadores
Anônimos no Estado de São Paulo
t. 229-1023 e 5562-5055
Mais informações sobre a entidade
e horários das reuniões em cada
cidade no site
www.jogadoresanonimos.org. |
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